Os principais erros dos brasileiros no Vale do Silício
Quando se mudou para San Francisco em 2006, o mineiro Reinaldo Normand já tinha um currículo recheado para um empreendedor digital brasileiro, responsável por comandar projetos na China, Japão e EUA. No coração do Vale do Silício, porém, Normand tinha em mãos um desafio mais amplo: junto à americana Qualcomm e a brasileira Tec Toy, comandaria a criação de um novo console, voltado principalmente ao mercado emergente.
Quando se mudou para San Francisco em 2006, o mineiro Reinaldo Normand já tinha um currículo recheado para um empreendedor digital brasileiro, responsável por comandar projetos na China, Japão e EUA. No coração do Vale do Silício, porém, Normand tinha em mãos um desafio mais amplo: junto à americana Qualcomm e a brasileira Tec Toy, comandaria a criação de um novo console, voltado principalmente ao mercado emergente. Quando o produto resultante do esforço, o Zeebo, chegou às prateleiras, ficou longe do impacto esperado. O console não vendeu bem e, em vez de salvar uma Tec Toy endividada, afundou-a ainda mais. Com o Zeebo enterrado, em vez de voltar ao Brasil, ficou no Vale com a sensação que “poderia aprender mais aqui”. Desde então, Normand fundou a startup Satomi, focada em design, e virou uma espécie de guia para empreendedores brasileiros que se aventuram na região onde surgiram algumas das maiores empresas de tecnologia do mundo, da Atari à Tesla, da Apple ao Google, do Facebook ao AirBNB.
Desde 2011, a quantidade de contatos dos brasileiros indo ao Vale do Silício para tentar a vida aumentou muito. A migração, porém, escondia algumas armadilhas: o brasileiro ia para a região mais tecnológica do mundo com uma visão totalmente errada dela. “As pessoas não têm a menor ideia de como o Vale do Silício e a cultura de startups funciona. É um outro planeta, diferente da realidade brasileira”, afirma. Baseado nestas interações, Normand escreveu o e-book “Vale do Silício” (gratuito, disponível em www.valedosilicio.com), que se apresenta como uma porta de entrada para quem, tal qual ele, queria desbravar a região. Nesta entrevista, Normand fala sobre os principais erros desta incursão por parte de empreendedores brasileiros, analisa a cultura de tolerância ao fracasso que permeia a região e explica por que só abrir uma filial em San Francisco não garante sucesso a ninguém.
Qual é o principal erro dos empreendedores que se mudam para o vale hoje pensando em empreender?
O erro mais comum do empreendedor iniciante é achar que, vindo para cá, sua startup irá conseguir dinheiro fácil de investidores. Não poderia estar mais enganado. O ambiente aqui é pelo menos umas cem vezes mais competitivo que o brasileiro. É preciso assimilar a cultura local para poder ser aceito no Vale. Isso leva anos. Outro problema que vejo frequentemente é a falta de produtos ou serviços competitivos fora do Brasil. Se sua empresa não foi pensada para competir globalmente, não adianta estar no Vale do Silício.
Neste caso, o tamanho do mercado interno no Brasil funciona como uma armadilha. Quais são bons exemplos de startups brasileiras que foram para o Vale e se mostraram competitivas?
Não existem startups brasileiras que vieram para o Vale e se tornaram competitivas internacionalmente; ainda. Como eu disse acima, vir para o Vale não mudará muita coisa na startup se ela não entender como funciona este lugar e assimilar sua cultura.
Por que escrever um livro sobre sua experiência no Vale do Silício?
Pela minha história e por viver em São Francisco, sou procurado frequentemente por empreendedores, funcionários públicos e executivos que querem saber mais sobre o Vale do Silício. Afinal de contas, esta região produz as startups mais influentes e inovadoras do planeta e há um enorme interesse em aprender sua fórmula de sucesso. Nestas conversas, e para minha surpresa, constatei que a maior parte das informações que eu compartilhava era considerada inédita e valiosa. As pessoas não têm a menor ideia de como o Vale do Silício e a cultura de startups funciona. É um outro planeta, diferente da realidade brasileira.
O livro surgiu desta constatação. Acho que a metodologia de sucesso do Vale pode ser útil para empreendedores iniciantes, empresas e até governos. Meu objetivo é atingir o maior número de pessoas possível e compartilhar tudo o que eu aprendi. Por isso, escolhi o formato gratuito.
O brasileiro que vai para aí acha que o Vale opera de que forma? De onde o brasileiro tira esta ideia?
Para ser justo, não é só o brasileiro que não entende o Vale do Silício. Até mesmo dentro dos EUA as pessoas têm dificuldades de entender este lugar pois ele opera com regras muito diferentes das existentes no resto do mundo. É um fenômeno único.
O problema é basicamente de educação. Ainda utilizamos as teorias gerais da administração e do marketing desenvolvidas no século XX. Elas funcionaram muito bem em indústrias antigas, mas não são mais aplicáveis na nova economia digital. Na minha visão, a metodologia de funcionamento das startups vai ser aplicada em todos os setores da economia daqui a 20 anos, simplesmente porque a tecnologia vai provocar disrupturas em todas as indústrias.
Nos últimos anos, o interesse dos brasileiros cresceu pelo Vale?
Sim, desde 2011 o interesse subiu muitíssimo. Principalmente vindo de empresas que buscam encontrar a "fórmula da inovação”, uma contradição em termos.
Por que? Muita empresa acha que é só abrir uma filial em San Francisco para explodir em vendas?
Porque não existe fórmula da inovação. Isto é uma falácia. Inovação vem da cultura da companhia. Muitas empresas acham que abrir uma filial no Vale do Silício as tornará inovadoras e isso não é verdade.
Há centros de inovação no Brasil que se gabam de ser o Vale do Silício brasileiro, como Belo Horizonte, São Paulo, Recife e Campinas. Quais destes centros se aproxima mais, em infra-estrutura e cultura empreendedora, com a região americana?
Em primeiro lugar, gostaria de dizer o quanto aprecio o trabalho dos empreendedores e investidores brasileiros para transformar a cultura do Brasil em todos estes centros citados. É louvável e eu os saúdo. Entretanto, embora tenha havido um progresso considerável nos últimos 3 anos, nenhum destes centros ainda chega perto do Vale do Silício. Há uma distância de pelo menos umas duas décadas entre o que é feito no Brasil e o que acontece aqui. A razão principal é cultural; e eu tento explicar no livro como isso pode ser mudado. É um processo de longo prazo onde o foco tem que ser em educação, mudança de mentalidade e em idolatrar os “role models”. Levará décadas.
A tolerância ao fracasso, fundamental na trajetória do empreendedor americano, já existe na cabeça dos empreendedores brasileiros?
Para ser justo, acredito que esta tolerância exista na cabeça de alguns corajosos empreendedores brasileiros. Mas o problema é que ela tem que ser estendida ao resto da sociedade incluindo empresas, investidores e imprensa. Ser julgado por erros que cometeu paralisa a inovação e destrói o ecossistema. Veja o caso do Eike Batista. As pessoas deveriam ser julgadas pelo que aprenderam com os erros. Errar todo mundo erra, é a coisa mais normal do mundo.
Mas errar do tamanho do Eike? Tratá-lo com o mínimo de desconfiança não seria natural depois que muita gente perdeu tanto dinheiro?
Claro, mas o caso do Eike é complexo. De um lado, ele foi brilhante, teve uma visão de Brasil que talvez tenha sido inédita na nossa história. Pensou grande e fez acontecer. Do outro, ele prometeu mais do que conseguiu entregar, o que gerou todos os seus problemas. Um clássico problema de execução. Mas não é porque ele falhou que devemos crucificá-lo como um vilão, a não ser que tenha havido fraude. E isso só a justiça poderá esclarecer.
Investir no mercado de ações ou em startups é uma atividade de alto risco. Perder dinheiro como investidor ou assistir companhias quebrarem faz parte do jogo do capitalismo. No Vale do Silício, 90% das startups irão fechar as portas.
Um sujeito nasce empreendedor ou seu entorno influencia esta formação?
Na minha visão, o empreendedor já nasce com uma tolerância ao risco e uma forma de pensar diferentes da maioria da população. Entretanto, para que o empreendedor aflore, é necessário um ambiente que entenda e estimule estas diferenças. Eu vi muita gente boa por aí que nunca seguiu o caminho do empreendedorismo por ter sido ridicularizada em suas idéias ou ideais. É terrível. Só quem passou por isso sabe como é. É um bullying societal.
Esta falta de experiência impacta a qualidade do empreendedor brasileiro?
Falta de experiência se conserta com experiência. Não é este o problema do empreendedor brasileiro, que é talentoso. O problema é o ambiente, que parece ainda estar com uma mentalidade da década de 80. É difícil tentar algo novo e inovador sem suporte dos outros entes do ecossistema. O Brasil, na minha visão, jamais aderiu à globalização. É um mercado ainda muito fechado, caipira, onde ser amigo do Rei é mais valioso do que produzir.
Enquanto não se mudar esta cultura, não progrediremos na mesma velocidade do resto do mundo. E continuaremos a exportar commodities.
Depois de criar o Zeebo, se envolveria de novo em um projeto de hardware no Brasil?
Não. Hardware não é complicado de fazer, tecnicamente falando. O problema é gerenciar o “supply chain”, capital de giro e os canais de distribuição. Quando se faz hardware, 90% do processo está nas mãos de terceiros, que você não controla. O risco é muito mais alto.
Fonte: Epoca