Artigo: A eficácia da revogação dos créditos presumidos do ICMS
Em 21 de setembro de 2012 o Governo catarinense fez publicar o Decreto nº 1.182, revogando, através da alteração nº 3.105, os incisos VIII, IX e XI do art. 15 do Anexo 2 do Regulamento do ICMS (RICMS/SC).
Em 21 de setembro de 2012 o Governo catarinense fez publicar o Decreto nº 1.182, revogando, através da alteração nº 3.105, os incisos VIII, IX e XI do art. 15 do Anexo 2 do Regulamento do ICMS (RICMS/SC).
Os dispositivos revogados tratam dos créditos presumidos do ICMS concedidos nas saídas de produtos de informática e automação fabricados de acordo com a Lei de Informática (“PPB”) e de outras mercadorias importadas por contribuintes detentores de regime especial pactuado à luz do Anexo 3, art. 10 do RICMS/SC.
O art. 2º do decreto revogador (nº 1.182/2012) determinou que as disposições nele veiculadas entrariam em vigor “na data de sua publicação, com exceção da Alteração 3.103, que produz efeitos retroativos a 1º de setembro de 2012”.
Tivemos notícia de que, informalmente, a Fazenda catarinense manifestou entendimento de que desde 21 de setembro os contribuintes não mais poderiam se utilizar dos ditos créditos presumidos, face à revogação “imediata” desses benefícios fiscais pelo Decreto em questão.
Na visão do agente fiscal consultado, tal revogação não se submeteria às regras constitucionais da anterioridade de exercício e da anterioridade nonagesimal (Constituição Federal de 1988 – CF/1988, art. 150, III, “b” e “c”), uma vez que não teria ocorrido instituição ou aumento do ICMS “em si” (majoração de alíquota ou base de cálculo), mas a “simples” revogação de um crédito presumido, elemento “meramente” escritural.
Esse entendimento mostra-se absolutamente equivocado e, caso venha a se materializar em obstáculos à apropriação dos benefícios revogados ou em autuações, no que se refere às operações praticadas até 31 de dezembro de 2012, implicará em ofensa direta aos direitos fundamentais dos contribuintes insculpidos na Carta Constitucional de 1988.
A CF/1988, com as modificações da Emenda Constitucional nº 42/2003, é categórica em determinar:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(…)
III – cobrar tributos:
(…)
b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;
c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b;
(…)
§ 1º A vedação do inciso III, b, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, IV e V; e 154, II; e a vedação do inciso III, c, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, III e V; e 154, II, nem à fixação da base de cálculo dos impostos previstos nos arts. 155, III, e 156, I.
O ICMS está sujeito à anterioridade de exercício (alínea “b”) e à anterioridade nonagesimal (alínea “c”), haja vista que não foi arrolado dentre as exceções contidas no § 1º do mesmo art. 150.
Dentre as “outras garantias asseguradas ao contribuinte”, conforme textualmente prevê o caput do art. 150, destacam-se os direitos e garantias fundamentais dispostos no art. 5º da CF/1988, especialmente no que tange à “inviolabilidade do direito à liberdade, à segurança e à propriedade”.
A segurança jurídica erigida como direito fundamental do cidadão-contribuinte funciona como alicerce da anterioridade, em seu viés de proibição à surpresa do contribuinte e de previsibilidade das modificações normativas que impliquem em aumento da carga fiscal.
Liberdade e propriedade, por sua vez, não podem ser afetadas pela tributação fora das balizas constitucionais, com extrapolação das rígidas limitações fixadas pela Lei Maior, nas quais se inclui a anterioridade.
É evidente a violação desses preceitos constitucionais pela aplicação imediata das revogações introduzidas pelo Decreto nº 1.182/2012, pois os contribuintes beneficiários dos créditos presumidos em questão serão surpreendidos com um aumento real do ICMS a recolher, sem o necessário tempo para assimilar e se adaptar à mudança, com significativos impactos na sua liberdade de agir (ou reagir) e em seu patrimônio.
Comerciantes de produtos de informática e automação que, até então, gozavam de um crédito presumido equivalente a 64,71% do imposto de 17% destacado em suas notas fiscais, que resultava em uma carga efetiva de apenas 6%, passarão a suportar um débito fiscal integral de 17%, na medida em que deixará de existir – de imediato – o desconto do mencionado crédito fiscal presumido.
Se o contribuinte recolhia, efetivamente, 6% do valor das suas saídas, e diante da revogação do benefício passará a recolher efetivamente montante superior a isso, é indiscutível que se está diante de aumento do ICMS a exigir sua produção de efeitos somente em 1º de janeiro de 2013, face à limitação ao poder de tributar fixada pelo art. 150, III, “b” da CF/1988 (anterioridade de exercício).
Em matéria de créditos do ICMS – elemento supostamente “escritural” que, todavia, exerce significativa influência na carga tributária concretamente suportada pelo contribuinte – o Supremo Tribunal Federal (STF) se posicionou no sentido da aplicação da regra da anterioridade quanto à eficácia de normas que alterem a sistemática de creditamento e, com isso, aumentem o valor do imposto a recolher.
Nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) nº 2.325-0/DF, o STF, em decisão unânime, deferiu medida cautelar para suspender os efeitos imediatos da Lei Complementar nº 102/2000, na parte em que restringiu a apropriação de créditos do ICMS sobre bens do ativo imobilizado, energia elétrica e serviços de comunicação, nos seguintes termos:
(…) acordam os ministros do Supremo Tribunal Federal, (…) por unanimidade, apreciando a questão do princípio da anterioridade, em deferir, em parte, a cautelar para, mediante interpretação conforme à Constituição e sem redução de texto, afastar a eficácia do artigo 7º da Lei Complementar nº 102, de 11 de julho de 2000, no tocante à inserção do § 5º ao artigo 20 da Lei Complementar mº 87/96 e às inovações introduzidas no artigo 33 da referida lei. Observar-se-á, em relação a esses dispositivos, a vigência consentânea com o preceito constitucional da anterioridade, vale dizer, terão eficácia a partir de 1º de janeiro de 2001. (…) (destaques nossos)
Inegável, portanto, que a anterioridade alcança qualquer forma de aumento da carga efetiva dos tributos não excetuados da sua observância, seja pela majoração de suas alíquotas ou base de cálculo, seja pela supressão de créditos – como é o caso do Decreto nº 1.182/2012.
Não convém, aqui, ingressarmos no mérito da ausência de convênio celebrado no âmbito do CONFAZ para o crédito presumido em pauta, o que, em tese, o tornaria inconstitucional e “inválido”.
Discordamos desse pensamento apriorístico, na medida em que não estamos diante da suspensão desse crédito presumido em sede de ADIN pelo STF, e sim, da sua revogação pelo próprio Governo do Estado, o que faz presumir sua constitucionalidade e aplicação até que produza efeitos o ato revogador.
O Estado, em nosso ver, não poderia invocar sua “própria torpeza” para escapar da observância do preceito da anterioridade, sob a justificativa de que teria revogado um benefício “nulo”, o que caracterizaria o absurdo dos absurdos, vez que o Estado, em assim agindo, buscaria se aproveitar do ato inconstitucional que ele mesmo produziu, em postura ofensiva à moralidade (art. 37 da CF/1988), que deve nortear a conduta do Administrador Público.
Por todo o exposto, queremos crer que o Estado de Santa Catarina, notável pelo rigor técnico com que se manifesta sobre temas ligados ao ICMS, manterá a sua firme postura de respeito para com o Estado Democrático de Direito e as diretrizes constitucionais tributárias aplicáveis ao caso, reconhecendo a postergação de eficácia da alteração nº 3.105 para 1º de janeiro de 2013.
Em assim não agindo o Estado, caberá aos contribuintes interessados e/ou prejudicados buscarem o Judiciário para afastar o precoce aumento do ICMS, decorrente da aplicação imediata da comentada revogação.
Artigo escrito por Márcio Alexandre O. S. Freitas – Especialista em Direito Tributário pela PUC/MG. Advogado e Consultor Tributário credenciado do i3 – Instituto Internacional de Inovação. Ex-Diretor de Consultoria Tributária da Deloitte Touche Tohmatsu.