Entre evoluções e censuras
“Prefiro o Obama lendo meus e-mails do que uma patota indicada pelo PT”. A frase foi dita pelo deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) em 25 de março – menos de um mês antes da aprovação do Marco Civil da Internet pelo Senado e pela presidente Dilma Rousseff.
“Prefiro o Obama lendo meus e-mails do que uma patota indicada pelo PT”. A frase foi dita pelo deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) em 25 de março – menos de um mês antes da aprovação do Marco Civil da Internet pelo Senado e pela presidente Dilma Rousseff. Em contrapartida, o deputado Alessandro Molon (PT-RJ), autor do texto original da proposta, disse que “os três pilares da nova lei, que são a neutralidade da rede, privacidade do usuário e liberdade de expressão, estão integralmente mantidos e fortificados em relação à proposta original”.
Está longe de ser novidade esse ambiente de discussões polêmicas entre os legisladores, pressão de empresas e entidades, reuniões de bancadas e grupos políticos, bem como a morosidade na definição de texto que trata de diretrizes que servirão como base jurídica e de um regimento sobre o comportamento da sociedade. É inclusive bastante semelhante à Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88, que definiu a Constituição de 1988 sob a qual o Brasil se regra. No entanto, é o retrato do desenvolvimento do Projeto de Lei 2126/2011, conhecido popularmente como Marco Civil da Internet, que busca regular o uso da grande rede em solo tupiniquim, envolvendo princípios, direitos e deveres de todas as partes envolvidas nesse meio. Com vários pontos duramente criticados e alvos de polêmica, tal qual ocorreu à época da Assembleia Constituinte, o PL foi aprovado em 26 de março deste ano na Câmara dos Deputados e, em 22 de abril, após aceite unânime dos presentes no Senado Federal, seguiu para a sanção de Dilma Rousseff – que também o aprovou.
O ponto mais polêmico diz respeito ao registro das atividades dos internautas. Hoje, os provedores são obrigados a manter um resumo das ações, chamado tecnicamente “log”, dos horários e IPs conectados durante seis meses. A lei prevê aumentar o período por tempo indeterminado sob requisição de autoridade policial ou administrativa. Também permite o acesso aos dados cadastrais que contenham qualificação pessoal, filiação e endereço, apesar da reiterada afirmação de que a privacidade, como determina a Constituição Federal, deve ser colocada em primeiro lugar. “Minha preocupação quanto à nova lei se dá em razão da possibilidade de se controlar não só o acesso do usuário, mas a própria produção do conteúdo”, destaca Patrícia Müller, advogada da unidade de Tubarão da Borges & Bittencourt Advogados Associados.
Executivos ligados ao setor de tecnologia e Internet, aliás, possuem opinião divergentes. Cassio Brodbeck, diretor da OSTEC, empresa que desenvolve softwares para segurança, afirma: “não há como garantir ou assegurar que o acesso só será feito pela Justiça”. Já Rafael Escrich, da SEC+, acredita que “a privacidade não é garantida, mas depende de uma determinação da Justiça, o que me parece válido”, pontua o consultor de segurança da informação da companhia.
Liberdades
Nos bastidores do Legislativo, fala-se na manutenção da soberania nacional como um dos pilares para o Marco Civil, uma vez que se consegue monitorar possíveis ameaças à integridade do Estado. Tal discurso remete, claro, ao controle dos “passos” dos internautas. Considerando-se que os protestos de 2013 foram organizados, em sua essência, na grande rede, não é difícil imaginar porque seria tão importante ter tal ferramenta à disposição. Na outra ponta, porém, acompanhar os passos dos usuários facilita investigações de crimes, fraudes e até sonegação de impostos. “Como na quebra do sigilo bancário, mantendo esse conceito de autorização judicial, é importante que se possa verificar as movimentações financeiras na Internet”, opina Anilton Valverde, diretor da Associação Catarinense das Empresas de Tecnologia (Acate), sediada em Florianópolis.
É por seus diversos pontos de atuação e interesse que a lei mantém-se como alvo de discussões e polêmicas. Há um certo consenso em torno da necessidade de uma legislação específica para a Internet, algo que se debate em todo o mundo. O problema está na linha tênue entre o monitoramento do que acontece no ambiente virtual e o controle dos acessos que possa limitar a difusão de informações ou mesmo sirva de ferramenta de censura por um governo menos liberal, ou, ainda, como forma de repressão política. Nações como Irã e China possuem, por exemplo, uma política nesse sentido – motivo de críticas por parte de vários países. “Não acredito que seja o caso do Brasil, pois pela essência a Internet é incontrolável, mas isso se torna perigoso, independentemente do partido que está no comando”, diz Anilton.
Se há a possibilidade de aproveitamento das diretrizes para o “mal”, o “bem” também pode ser feito com o Marco Civil. “Ele regulamenta a relação do brasileiro com a Internet. Em nosso ramo, protegem-se as partes envolvidas nas negociações, sejam elas pessoas físicas ou jurídicas, e se diminuem as chances de fraudes”, aponta Cristiano Chaussard, diretor do Grupo Digital Santa Catarina, de Florianópolis, e da Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (ABComm) no estado. Para as situações mais comuns no relacionamento das companhias desse segmento, o que está previsto no Código de Defesa do Consumidor já é bastante completo, mas ao tirar o usuário do anonimato há uma proteção jurídica, que pode servir para os dois lados. “O Marco Civil faz com que o ambiente virtual não seja uma terra sem leis, mas a transparência dos atos não impede ninguém de fazer nada”, continua Cristiano.
Essa é a linha de pensamento, em geral, de quem defende a lei – ou ao menos é o “ponto positivo” do texto, para alguns especialistas. Com ele, acredita-se que haverá um esclarecimento a respeito das ações tomadas no âmbito digital, criando algo específico para a Internet, um terreno diferente dos demais. “A regulação das questões voltadas à web através de lei específica pode evitar a insegurança jurídica no que se refere à matéria, pois contribui para que no âmbito dos tribunais do país não existam julgamentos divergentes em casos semelhantes”, avalia Patrícia, da Borges & Bittencourt. Dessa maneira, difamação e roubos on-line seriam tratados como aconteceria no “mundo real”, baseando-se na legislação atual. Já para as exposições indevidas como as de imagens íntimas, há a Lei 12.737/2012, conhecida como Lei Carolina Dieckmann, que modificou o Código Penal Brasileiro especificando o que seriam alguns delitos cibernéticos.
Tecnologia sem fim
Há quem defenda também outro aspecto da nova regulamentação. A neutralidade da rede garante ao usuário o acesso pleno aos serviços, independentemente da contratação, evitando que o provedor bloqueie determinadas ferramentas. Uma fornecedora de Internet e também de telefonia não poderia evitar o uso de um servidor de ligações por VoIP como o Skype, por exemplo. Discutem-se, porém, exceções que podem reduzir o poder desta medida. “Alguns pontos, como esse, já são apontados no Código de Defesa do Consumidor, então não há uma mudança gritante na garantia desses direitos”, explica Cássio, da OSTEC.
Para determinados setores do mercado, a aprovação do Marco Civil serviria como uma garantia a mais de segurança dos dados. As empresas de comércio eletrônico aprovam o projeto – com algumas ressalvas. Para elas, a identificação de cada usuário é o ponto mais importante, pois reduziria a prática de fraudes, como uso de dados falsos ou roubados, evitando prejuízos para o consumidor, vítima do furto de informações, e a companhia de E-Commerce, com perda de mercadorias. O Marco Civil não estabelece algo específico para o comércio eletrônico. “Existem leis paralelas que tratam melhor desse assunto. Mas o fato de o internauta não ser anônimo é crucial para garantir a integridade do segmento”, ressalta Cristiano, da ABComm.
Um ponto criticado por empresários do setor foi a nacionalização de servidores. O texto original previa que corporações de hospedagem de sites, empresas de Data Center e fornecedores de software pela Internet, entre outros ramos de atuação, dispusessem todos os seus centros de processamento de dados em solo brasileiro. O alto custo dos equipamentos no Brasil e os gastos com migração tornariam as operações muito onerosas, inviabilizando os negócios. Várias entidades, entre elas a ABComm, reuniram-se com bancadas de deputados para transformar a cláusula mais flexível, e uma mudança de última hora alterou tal obrigatoriedade. “A internet é mundial. Sua concepção é livre. Utilizamos servidores de diferentes regiões em acessos regulares. Não tem porque ser tão nacionalista nesse sentido”, opina Cassio.
Novos “casos Snowden”?
O que se tem quase como unanimidade entre os analistas do segmento eletrônico é a tentativa de fazer do Marco Civil uma garantia de inviolabilidade dos dados virtuais, evitando que ocorra espionagens em documentos oficiais. O caso de vazamento de informações da Agência Nacional de Segurança (NSA) dos Estados Unidos pelo ex-funcionário terceirizado Edward Snowden acendeu um alerta em todo o mundo, não sendo diferente no Brasil. Por isso, o PL que foi apresentado em 2011 e iniciado dois anos antes ganhou caráter de urgência em 2013. “Há a tentativa de controlar o que acontece na Internet, mas ela é incontrolável. O certo, mesmo com riscos, é monitorar, criando-se algo mais complexo, como um serviço de inteligência para esse fim”, opina Anilton, da Acate.
Agora aprovado, o Marco Civil da Internet precisa de uma regulamentação – algo que muitas vezes ocorre por decreto presidencial – que dirá como a lei será aplicada. Ele deve servir como a Constituição de 1988, a mesma que gerou tanta polêmica e discussão e levou quase dois anos para ser concluída. No caso atual, há uma maior duração na elaboração das diretrizes, dada, claro, à menor importância em relação ao texto que rege o país inteiro. Porém, por sua influência e, principalmente, sua relevância nas relações sociais e comerciais pela grande rede, pode-se dizer que se vivencia uma Assembleia Constituinte de âmbito virtual. E, pelo panorama atual, ainda restarão polêmicas e discussões.
Fonte: Negócios e Empreendimentos